“Uma voz sem corpo” — por Renato Linhares | Supersônica

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“Uma voz sem corpo” — por Renato Linhares


Orelha do audiolivro – texto inédito encomendado pela Supersônica para Renato Linhares sobre a versão em audiolivro de Cérebro_Coração, de Mariana Lima.

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Uma voz sem corpo. Estou ouvindo uma voz sem corpo. É exatamente isso que penso enquanto ouço Cérebro_Coração, de Mariana Lima.

É que ainda que se conheça a pessoa que carrega a voz – digamos que, por um acaso, já a tenhamos visto por aí, atuando, ou na mesa de um bar – a memória parece ser incapaz de formar sua imagem tal como ela é. A pessoa, de carne e osso, que Mariana é.

No teatro, a conferencista criada por Mariana nos leva a crer que ela própria irá dissolver-se em linguagem. Ela sabe que uma única palavra é capaz de constituí-la ou desintegrá-la, com a mesma força. No entanto, ao ouvir-sem-ver Cérebro_Coração, somos nós que a deformamos com a linguagem. Nos tornamos, ao mesmo tempo, testemunhas de suas palavras e agentes de sua vontade.

A percepção não é, de forma alguma, imediata. Eu demoro um pouco para me dar conta, para conceber o desalinho do que vejo: um rosto gigante, de dimensões assustadoras, um rosto que não caberia no palco de um teatro; do nada, somem os olhos, vejo apenas uma boca, uma boca fechada, uma boca que não se move, e ainda assim fala (estaria eu lendo seus pensamentos?); de repente, uma mulher pequenina, tão pequenina que cabe na palma da mão. As formações que faço de Mariana são totalmente irreais e, para mim, é tudo natural, possível. Mais do que isso: inquestionável.

As paisagens que nos chegam através da voz de Mariana também se moldam com as palavras, o tempo todo. “É que o mundo é totalmente plástico”, diria a conferencista.

E tudo isso me parece divino, porque esse imaginário, que é também o da peça, se mostra tão complexo e mutante quando a ouvimos-sem-ver, que não existe pensá-lo em disputa com outros imaginários. Não há disputa. Não há comparação. Podemos dizer em voz alta, “que alívio”, “que alegria”, “até que enfim”, “não há o fiscal”, “não há punição”, e nos emocionarmos loucamente, porque o que eu lembro não é o que você lembra, e nos darmos a permissão de achar isso engraçado e não constrangedor, uma abertura frondosa de possibilidades e não aquele empurra-empurra pela palavra final que não interessa em nada, briga comum entre pessoas, mas também interna, insuportável e desnecessária.

Poderíamos agora mesmo fazer um exercício para nos livrarmos desta maldição, o que acham? Vai ser rápido. Eu prometo. Fechem os olhos, imaginem um vulcão adormecido. Agora imaginem um vulcão em erupção. Agora sobreponham as imagens. Pronto, isso é um vulcão, uma transparência infinita de múltiplas imagens e significados, formas, cores, padrões, importâncias, cadências.

Termino de escutar a peça e percebo que venho fingindo ser Mariana, que finge ser Clarice. E como elas eu também digo “sim”. Alguma coisa está diferente, e não tem fim, já que nunca começamos. Sim, agora vejo outra coisa. Sim, agora ouço outras coisas. Porque tudo é variante, e nunca, apenas voz.

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Renato Linhares vive no Rio de Janeiro. É encenador, coreógrafo, ator, dançarino e preparador de elenco. Foi atleta durante grande parte de sua infância e adolescência (Ginastica Artística • 1987-1990 • e • Patinação Artística • 1991-1998). A partir de 1999 passa a desenvolver trabalhos diversos no teatro, na dança, no circo, no cinema e na televisão. Sua criação mais recente intitula-se SHAMPOO [ autobiografia do chão ], um espetáculo dedicado ao tempo em que sua vida era, quase toda, de patins. É codiretor, ao lado de Enrique Diaz, do espetáculo Cérebro_Coração, de Mariana Lima, editado pela Cobogó e lançado em audiolivro pela Supersônica.