Resenha Ana Cristina César sobre Mulheres de Tijucopapo
Essa resenha foi publicada originalmente no jornal Leia Livros, em setembro de 1982, e faz parte da nova edição de “As mulheres de Tijucopapo”, organizada pela Ubu editora. Ao criticar o livro de estreia de Marilene Felinto, Ana Cristina César parece revelar um pouco da sua própria relação com a linguagem e com a identidade feminina. A poeta, formada em Letras pela PUC-Rio, mestre em Comunicação pela UFRJ e em Teoria e Prática de Tradução Literária pela Universidade de Essex, na Inglaterra, escreveu esse texto um ano antes
de sua morte, em 1983.
EXCESSO INQUIETANTE: AS MULHERES DE TIJUCOPAPO
ANA CRISTINA CESAR
“As mulheres são um pouco doidas e os homens são um pouco menos.” Eis aí uma espécie de charada que dá um certo medo: em que consiste esse um-pouco-a-mais de loucura das mulheres? Tanto a charada como o medo estão presentes no livro de estreia de Marilene Felinto, As mulheres de Tijucopapo. Sem evitar cair no lugar-comum, é bom que se reconheça logo que este é um livro “de mulher”, que dá pano para manga para a questão do feminino. E um livro que conta, feminamente, a história de um retorno às origens: um retorno mítico de São Paulo para o Recife natal. Femininamente significa aqui: de forma errante, descontínua, desnivelada, expondo com intensidade muito sentimento em estado bruto.
Significa também: dirigindo-se eternamente a um interlocutor, falando sempre para alguém, como numa carta imensa. Mas ao mesmo tempo esse feminino transborda um excesso inquietante. Ao longo do livro trava-se uma luta com esse feminino excessivo, com esse a-mais, porque o excesso se situa à beira de uma amedrontadora indefinição, à beira de uma impossibilidade de afirmar, afirmar-se, dar forma, acabar-se.
“Tudo é turvo” neste excesso, diz a autora. Com muita garra, Marilene tem a coragem de escrever disto que é turvo. Mas sem hermetismo algum.
O resultado é uma narrativa autobiográfica, traçada em ziguezague, construída toda em desníveis, numa dicção muito oral, atravessada de balbucios, repetições, interrupções, associações súbitas, falas de tonalidade infantil. Marilene escreveu As mulheres de Tijucopapo aos vinte e dois anos. É um livro vital, intenso, loucamente atormentado pela questão do feminino (mais, muito mais do que com a questão da origem pobre em Pernambuco, como pode parecer). No final, é anunciada a possibilidade de desembaraçar-se desse tormento. À primeira vista, essa possibilidade significa apenas desenredar-se da ameaça do feminino e atrelar-se ao pouco-menos de loucura do masculino; é o que se esboça na chegada a Pernambuco, quando toma vulto uma estranha afirmação. “Porque eu posso no máximo seguir Lampião. Por uma causa justa.” Será que a solução é o fincar-pé masculino, que afirma, dá forma, tem causa e lugar – no máximo? Prefiro acreditar que esta não é a única solução para as tensões deste livro inaugural. O mais interessante – e promissor – do texto, está antes na sua superfície, no seu falar errante, solto, desarticulado, desnivelado. Corta esta superfície a angústia da pergunta: como não sucumbir ao a-mais de loucura das mulheres? Essa angústia busca resolver-se num sintomático desejo de articulação, mas prefiro acreditar que este desejo é apenas provisoriamente o de “seguir Lampião”. Prefiro acreditar que esta trajetória que ainda não sabe bem de si tem sim uma direção própria: a direção do desejo por (um pouco) mais literatura. A própria autora o denuncia claramente quando confessa a três por quatro o desejo de contar tudo aquilo numa carta escrita em inglês. A carta é o próprio livro. Tendo chegado a Tijucopapo, nome de sua origem mítica, Marilene já pode passar para o inglês a carta que conta da viagem e explica: “Inglês é um material estrangeiro que me fascina e me separa dessa proximidade toda de enviar uma carta de mim na língua de minhas pessoas, a minha língua. Não quero que saibam de mim assim tão proximamente”.
É isso aí: literatura é de um material como que estrangeiro, que nos separa dessa proximidade do sentimento bruto, nos descola de nós e da língua das nossas pessoas. Não é preciso atrelar-se a Lampião nem tampouco “androgenizar-se” (como queria Virginia Woolf) para fazer grande literatura. A trip de Marilene terá direção: literária. Nesse sentido, é possível retornar, desenredada, para o pouco-a-mais da loucura das mulheres: no retorno, o feminino começará a falar loucamente “em inglês”, isto é, mais literariamente. Tudo indica que Marilene vai nessa. Vale conferir. Então, so long, goodbye and best wishes.